sábado, 7 de junho de 2008

MILÍCIA, O REMÉDIO QUE MATA


Veneno que parece remédio




Secretário Nacional de Segurança Pública alerta para o risco de recorrer à ilegalidade contra o crime



Rio - Os fins já não justificam os meios. É o que prega o secretário nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri, quando lamenta o crescimento dos grupos paramilitares no Rio de Janeiro. Para o professor de História e educador que desde março ocupa o cargo de titular da Secretaria Nacional de Segurança (Senasp), o senso comum de que contra o crime tudo é válido acaba criando coisas como as milícias, que dominam atualmente 78 favelas cariocas.

Balestreri vai ainda mais longe: milícias e quaisquer tipos de seguranças privadas clandestinas levam à corrupção e à defesa de interesses políticos escusos. “É fundamental percebermos também o perigo que é o senso comum. Toda vez que a sociedade é leniente, complacente com qualquer atividade ilegal de combate ao crime, a conseqüência é o surgimento de um outro crime. Nós temos uma história no Brasil em que todos os grupos ditos justiceiros, vingadores da violência e do crime, surgem sempre aplaudidos pelo senso comum e sempre acabam envolvidos com algum tipo de corrupção, manipulação social ou atividade criminosa”, disse o secretário.

Ao lembrar o episódio em que a equipe de jornalistas e motorista de O DIA foram torturados por integrantes da milícia da Favela do Batan, em Realengo, Balestreri faz questão de destacar a importância de não se deixar nada impune. “O acontecido nos faz pensar sobre a importância da liberdade de imprensa e principalmente de cerrar fileiras ao lado desses profissionais. E também nos faz pensar sobre a grave responsabilidade que temos em não admitir nenhuma forma de combate à violência e ao crime que se fundamente também no crime, no obscurantismo e em poderes ocultos. Temos de combater qualquer coisa — mesmo que se apresente como combate ao crime — que não seja formal, transparente e oficial, porque fatalmente estas coisas se revelam criminosas”, afirmou.

Para o secretário, a tortura aos jornalistas não pode cercear as iniciativas da imprensa em relação às áreas de exclusão social. “É claro que os jornalistas precisam tomar medidas de segurança para que não sejam vitimados. A imprensa precisa continuar indo a todos os lugares, porque não existe democracia sem liberdade de imprensa. Temos que garantir para a imprensa o livre trânsito, porque muitas vezes ela também atua como uma espécie de ouvidoria social. A imprensa tem capilaridade social e ajuda no aprimoramento da democracia.”



GRUPOS DE EXTERMÍNIO

O secretário reforça o discurso de que as milícias são como os grupos de extermínio que fizeram trágica história na Baixada Fluminense nas décadas de 70 e 80. “É tudo a mesma coisa, com outro nome”, disse Balestreri. “Acho importante, evidentemente, que o Estado ocupe espaço, que volte a dar proteção aos pobres, às pessoas particularmente indefesas, mas é fundamental que isto seja feito com base nos processos da legalidade e da moralidade. Qualquer um que se apresente como justiceiro evidentemente vai trazer interesses escusos e acabar se voltando contra a própria sociedade, como o episódio com os jornalistas nos demonstra.”

“É importante neste momento que a sociedade inteira se una contra as milícias, o estado paralelo e o crime organizado”, ressalta o secretário, que programa outras viagens de Brasília ao Rio para acompanhar a repercussão do caso e as investigações.

O gaúcho Balestreri ocupava na Senasp o cargo de diretor de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança. Com a saída do secretário anterior, o deputado federal Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), assumiu o cargo.



COMUNIDADES SOFREM TAMBÉM COM A FALTA DE SERVIÇOS BÁSICOS

A ausência do Estado e dos serviços básicos que conferem o mínimo de dignidade aos cidadãos abrem espaço para a entrada das milícias nas comunidades do Rio. No entanto, as promessas de mudanças oferecidas pelos policiais que integram os grupos paramilitares, na prática, não trazem melhorias estruturais aos moradores. Ao contrário. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que as favelas ainda carecem de saneamento, educação e fonte de renda.

Na Favela do Batan — cenário do seqüestro e da tortura sofrida por jornalistas de O DIA e um morador, dia 14 —, dos mais de 500 domicílios registrados pelo IBGE, 122 sobrevivem com renda entre um e dois salários mínimos. A falta de oportunidades no mercado de trabalho pode estar diretamente ligada à baixa escolaridade dos moradores.Mais de 170 chefes de família concluíram apenas o Ensino Fundamental. Das residências pesquisadas, 12% dos responsáveis pela renda familiar são analfabetos.

A realidade não é diferente em Rio das Pedras, comunidade de Jacarepaguá considerada o berço da milícia no estado. Mais de 25% das 5.500 casas da favela despejam seu esgoto em valas a céu aberto ou rios da região. A situação é ainda mais crítica em outros 700 domicílios, que sequer possuem aparelho sanitário.

A mesma precariedade educacional encontrada no Batan é observada em Jacarepaguá, onde cerca de 15% dos moradores não sabem ler e escrever.

Na Favela da Palmeirinha, em Guadalupe, onde recentemente a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas (Draco) prendeu chefes da milícia, 14% dos moradores despejam esgoto em fossas.

A tomada do Morro da Caixa D’Água, em Quintino, no início do ano, também não trouxe nenhuma perspectiva de avanço na qualidade de vida. Das 618 residências pesquisadas pelo instituto, 134 não possuem renda. Cerca de 170 trabalhadores responderam que sustentam suas famílias com renda de um a dois salários mínimos.



Fortalecidas pela ausência do estado

A ausência do poder público transformou as áreas mais carentes do Rio em terreno fértil para todo tipo de ilegalidade, hoje capitaneada pelos chefes das milícias. Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes, a pesquisadora Silvia Ramos chama a atenção para a tolerância das autoridades — principalmente policiais — para o processo de fortalecimento dos paramilitares.

“Durante muitos anos a chamada polícia mineira de Rio das Pedras constituía um fenômeno isolado. Em poucos anos, grupos armados ilegais formados por agentes ou ex-agentes da lei se espalharam por inúmeras favelas do Rio e seguem crescendo. Alguns comandantes e delegados diziam que milícias eram preferíveis ao tráfico, pois ao menos não trocavam tiros com a policia”, destaca Silvia. “Houve quem pensasse que as milícias seriam uma solução para combater traficantes de drogas nas favelas. Em alguns casos houve apoio escancarado e em muitos houve vista grossa de comandantes que sabiam que seus homens estavam trabalhando em milícias no bico”, lembra ela.

Uma vez ocupadas, no entanto, as comunidades controladas por milicianos simplesmente descobrem que o terror apenas mudou de nome. “Milícias agem como o tráfico: são grupos armados que mantêm o controle de um território. Controlam as entradas, as saídas e todas as atividades dos moradores.Como o tráfico, só se estabelecem em áreas da cidade onde o Estado ou não está ou nunca esteve”, explica a coordenadora do CESeC.

O caminho de volta à legalidade nessas comunidades, destaca Silvia, passa necessariamente pelo respeito aos moradores. “Quando a polícia se fizer respeitar dentro das favelas, respeitando os moradores, o Rio estará no caminho de vencer o tráfico e as milícias. É o processo que ocorreu onde a violência foi reduzida, como em Nova Iorque, Bogotá e Medellín”, compara.


Fonte O Dia

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