segunda-feira, 9 de junho de 2008

MILÍCIA NÃO SALVA VIDA, SÓ QUER DINHEIRO


"Milícia não salva vida, só quer dinheiro"


Para especialista, objetivo dos grupos paramilitares é construir governo paralelo.



Rio - O esquema de segurança particular nas ruas da Zona Sul do Rio nada mais é do que uma variação das milícias que impõem suas leis e aterrorizam 78 comunidades carentes da cidade, entre elas a Favela do Batan, em Realengo, onde equipe de O DIA e um morador foram torturados dia 14 por milicianos. A afirmação é da antropóloga Jacqueline Muniz, ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública e integrante do Instituto Brasileiro de Combate ao Crime (IBCC).

Para a estudiosa, os grupos de vigilância clandestina do chamado ‘asfalto’ e os bandos que atuam como poder paramilitar nas favelas têm o mesmo princípio: destruir a Segurança Pública para transformá-la em mercadoria, usando recursos humanos públicos — no caso, o policial que vende a proteção. “O cidadão acaba sendo bitributado. Todos nós estamos pagando duas vezes pelo serviço. Afinal, alguém está usando o recurso público para fins particulares”, diz.

A equipe de O DIA — repórter, fotógrafo e motorista — passou por uma sessão de tortura que durou sete horas e meia, juntamente com um morador da comunidade. Os algozes descobriram que os profissionais faziam reportagem mostrando como vivem os moradores de uma comunidade submetida às leis da milícia.


—O que está por trás do falso discurso de proteção da milícia?

—A milícia não está ali para salvar ninguém. Está ali para acumular recursos e disputar uma economia de impostos informais com outros grupos, por isso toda lógica de proteção tem taxa — a comissão em cima do motoboy, do táxi, do comércio, do gatonet, da banda larga. Tudo isso é uma receita em dinheiro. É isso que está sendo disputado. Não há nenhuma guerra contra o crime, nenhuma cruzada moralista. Isso é uma desculpa moral para ocultar o propósito fundamental, que é da construção de governos paralelos. A milícia é a expressão cabal, deliberada, da lógica de privatização, de apropriação para propósitos particulares dos recursos públicos de segurança. Ela é a expressão mais bem acabada de como o mandato público da segurança foi sendo apropriado para fins particulares, seja para interesses políticos-partidários, seja para atender grupos de poder. Isso é uma guerra pelos recursos dos impostos informais, que vão alimentar campanhas eleitorais.


—Qual a diferença entre a milícia de favelas, como a do Batan, e a segurança particular que vemos nas ruas da Zona Sul?

—A segurança particular na Zona Sul é uma versão diferenciada das milícias, com o mesmo princípio: “Eu destruo a Segurança Pública, transformo a Segurança Pública em mercadoria”. Então, estou sendo bitributada. Eu, você, todos nós estamos pagando duas vezes o tributo. Afinal, tem alguém usando do recurso público para fins particulares. Se no asfalto você tem a vigilância clandestina, é porque existe uma ameaça: “É melhor vocês contratarem segurança clandestina porque não temos recurso para fazer o policiamento convencional.” São os próprios setores da polícia que vendem a proteção. Se você não comprar, seu carro pode ser quebrado, você pode ter problemas na sua área, pode ter assaltos fabricados. Assim funcionou em bairros com gângsteres em Chicago (EUA), na Inglaterra pós-reforma no século 19 e em Nova Iorque antes da reforma na década de 70.


—A prática da milícia tem origem política?


—O mandato é uma procuração. Nós, sociedade, delegamos uma procuração à polícia, ao Estado, para que ele produza policiamento: “Eu autorizo que você me vigie”. Então, o maior poder de uma democracia é o poder de policiamento público, portanto o poder de coagir o cidadão. Quando esse poder é um cheque em branco, uma folha em branco assinada, alguém vai preencher no seu lugar. Então, é como se o mandato de polícia no Brasil, e de maneira mais dramática no Rio, tenha sido preenchido por outras pessoas que não nós. Isso vai criando mecanismos paralelos de governabilidade.



—Qual o grande desafio para resolver o problema?

—É promover a segurança pública. Quem me garante sair de casa, trabalhar e voltar? É a Segurança Pública. Mas ela virou mercadoria de grupos que escolhem quem deve estar em cada delegacia, grupos que exploram a própria polícia.



—O que acontece quando se privatiza o mandato público de policiamento?

O nome disso é desvio de conduta e corrupção. Eles (milicianos) são um bando armado a disputar territórios com outros bandos, portanto é tirania. Não há diferença de qualidade: seja tirania exercida por agentes da lei, seja exercida por criminosos. Se você tem a polícia sendo desviada da sua função para a coleta informal de impostos, estamos todos expostos à violência como moeda de troca, ao terror como horizonte, à ameaça como condição. Por isso a tortura vivida pelos jornalistas não é um caso isolado. Apesar da tragédia, é previsível. O libertador de antes é o tirano de hoje. A lógica da proteção é desigual: paga-se para se ter, mas qual é fundamento da proteção? A ameaça. Você precisa estar permanentemente ameaçado para aceitar a proteção do coronel da esquina. Como a proteção é finita, porque ela não é coletiva, ela não é de todos, você vai estar sempre inseguro, cada vez mais refém. E quanto mais refém do medo que você fica, mais você abandona as garantias individuais e coletivas e nossos direitos como cidadão. Então, continuamos a ser oprimidos. Quando falamos em polícias, falamos do exercício concreto de poder do Estado. Se sobre ele nós não temos controle, então é ilusório falar de governabilidade.



Fonte O Dia.

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