terça-feira, 14 de julho de 2015

No tribunal do tráfico e da milícia, tortura é punição rotineira




No tribunal do tráfico e da milícia, tortura é punição rotineira



Um erro trivial custou a vida de Andressa Cristina Candido, de 19 anos. Moradora do Morro da Quitanda, em Costa Barros, ela pegou o ônibus errado e foi parar na Favela do Chaves, em Barros Filho, comunidade vizinha e controlada por uma facção rival à daquela que dominava o lugar onde vivia. Andressa esperava outra condução quando foi abordada por traficantes. Arrastada até um barraco, a jovem foi espancada e estuprada por oito homens. Em seguida, jogada num rio e apedrejada. A morte cruel foi o castigo por estar em território inimigo.

Como O GLOBO revelou ontem, na primeira reportagem da série “Tortura, um mal que persiste”, 699 processos por esse crime foram instaurados no Tribunal de Justiça do Rio desde 2005. Ao contrário de tratados internacionais, que definem a prática como um crime cometido pelo Estado, a lei 9.455/97 abrange atos cometidos tanto por agentes públicos como por pessoas comuns. No Rio, a expansão do poder paralelo deu visibilidade às atrocidades do tráfico e da milícia, organizações que criam suas próprias leis e cometem crimes bárbaros em nome do domínio territorial. Segundo dados da pesquisa “Julgando a tortura”, coordenada pela ONG Conectas e pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, 70% das decisões em segunda instância do Rio, entre 2005 e 2010, tratavam de torturas cometidas por agentes privados.

MÃE CONTA QUE FILHA GRITAVA DE DOR

Andressa não tinha ligação com o tráfico. Mãe de uma menina de 1 ano, a jovem trabalhava entregando panfletos e cursava o 2º ano do ensino médio à noite. Sonhava em seguir a carreira militar. No dia do crime, 16 de setembro de 2013, ela voltava da casa do namorado, em Senador Camará, com um amigo e a sobrinha dele, de 8 anos. A menina fugiu dos criminosos e foi até a casa da família, que teria avisado a polícia sem ser atendida. Muito machucada — ela fora surrada com um pedaço de madeira e recebera golpes de martelo na cabeça e na perna —, Andressa foi carregada pelo amigo, que também havia sido espancado, até conseguirem ajuda. A mãe dela, a auxiliar de serviços gerais Andreia Candido, de 37 anos, conta que sua filha passou três dias sem atendimento, em cima de uma maca no Hospital Salgado Filho, no Méier.— É muito difícil ouvir a sua filha dizer que foi violentada e ainda conseguir forças para apoiá-la — emociona-se Andreia. — O pior foi no hospital. Ela gritava de dor, mas ninguém ia medicá-la. Até hoje não sei qual foi a causa da morte dela. Já chorei tanto que atualmente sinto como se tivesse ficado seca por dentro.Três acusados pela morte de Andressa e pelo espancamento do seu amigo, testemunha-chave do caso, foram presos e condenados pelo crime de tortura, entre outros, com penas entre 36 e 42 anos de reclusão em regime fechado. Outros cinco, que seriam adolescentes, ainda estão soltos.

O assassinato do estudante Hugo da Silva, de 18 anos, morador da Favela Roquete Pinto, em Ramos, dominada por milicianos, também teve motivo banal. Ele foi espancado e arrastado por 500 metros na rua principal da comunidade até as margens da Avenida Brasil. O caso aconteceu depois da histórica derrota do Brasil para a Alemanha, por 7 a 1, em 8 de julho do ano passado. Hugo, que bebia num bar com amigos, tinha deixado o grupo para urinar numa praça. Foi abordado por um miliciano, que queria saber o que ele estava fazendo. O estudante indagou a razão da pergunta e deu-lhe as costas. Começou a briga. Mais de dez paramilitares armados chegaram ao local, dando início ao espancamento. Na época, a favela, que fica na Maré, era ocupada pela Força de Pacificação. Além disso, o fato ocorreu perto de um posto da PM. No entanto, ninguém evitou a tortura.

— Eram socos, pontapés, cotoveladas na nuca e chutes na cara dele. Foi horrível. Eles saíram arrastando o corpo do rapaz. Quando se levantava, eles lhe davam uma banda e tudo recomeçava. Isso aconteceu várias vezes. Tentamos ajudá-lo, mas eles gritavam que ia sobrar para a gente — disse uma das testemunhas.
 Hugo conseguiu atravessar uma passarela da Avenida Brasil, onde foi socorrido por um morador. Levado para o Hospital Federal de Bonsucesso, acabou não resistindo aos ferimentos. Desde então, seu pai, o sargento da PM Gelson Miguel da Silva, de 45 anos, luta na Justiça para pôr os assassinos do filho na cadeia. Segundo Gelson, o chefe da milícia na Roquete Pinto está foragido, assim como outros seis acusados. Há quatro presos pelo crime, entre eles o soldado da Marinha Deivid da Silva Gonçalves e o agente penitenciário Jonathan Anselmo Marques dos Santos.

— Não vou negar que já tive pensamentos ruins para vingar a morte do meu filho. Mas tenho autocontrole. Não posso me igualar a esses bandidos. Acredito na Justiça — afirma Gelson.

O processo sobre o homicídio de Hugo da Silva está no III Tribunal do Júri, em fase de depoimentos. Apesar de sete dos 11 milicianos estarem foragidos, há informações de que eles ainda mantêm negócios na Favela Roquete Pinto.

A antropóloga Alba Zaluar, autora de um estudo sobre vitimização em favelas do Rio, explica que o poder paralelo tem o seu próprio “tribunal” e suas leis, inclusive a do silêncio. Segundo ela, as queixas sobre violência física são mais comuns em áreas de milícia do que de tráfico. Em regiões controladas por traficantes, os litígios também são resolvidos pelo poder das armas.

— Traficantes atiram no pé, nas mãos. Só o Estado pode usar a violência legitimamente em prol da sociedade. O problema é que o Brasil tem territórios extensos e, em alguns deles, a polícia não entra. As UPPs surgiram para resolver esse problema: a imposição do poder paralelo por milícias e pelo tráfico.

 HISTÓRIA DE AMOR ACABOU EM MORTE

Bairro de Antonina, São Gonçalo. Na noite de 11 de dezembro de 2014, traficantes invadiram uma casa. Procuravam por Bruno Costa Rodrigues, de 31 anos. Ele pulou um muro para fugir, mas não foi longe: na queda, feriu o pé e acabou sendo alcançado. Levou socos, pontapés, pauladas. A tortura seguiu madrugada adentro. Os bandidos passaram de motocicletas sobre seu corpo.

A violência extrema teve várias testemunhas. Segundo o pai de Bruno, o comerciante Alberto Rodrigues Neto, de 53 anos, seu filho foi socorrido depois que uma pessoa ligou para a PM. Levado para o Hospital Alberto Torres, ficou internado, em coma. Tinha fraturas pelo corpo e traumatismo no crânio. No dia 22, sem chances de recuperação, teve a morte cerebral declarada pelos médicos. Sua família doou os órgãos.
— Ele lutou dez dias, mas era quase impossível resistir a tanta violência. Enterrei meu filho no dia 24 de dezembro — diz Alberto, ao lado da mãe de Bruno, a dona de casa Solange Costa, de 55 anos.

Os acusados foram presos e estão sendo julgados por tortura seguida de morte. Testemunhas contaram que Bruno foi caçado pelos bandidos porque começou a gostar de uma jovem parente de um dos torturadores.

— Ele se apaixonou — lembra o pai.


Fonte O Globo