No tribunal do tráfico e da
milícia, tortura é punição rotineira
Um erro trivial custou a vida
de Andressa Cristina Candido, de 19 anos. Moradora do Morro da Quitanda, em
Costa Barros, ela pegou o ônibus errado e foi parar na Favela do Chaves, em
Barros Filho, comunidade vizinha e controlada por uma facção rival à daquela
que dominava o lugar onde vivia. Andressa esperava outra condução quando foi
abordada por traficantes. Arrastada até um barraco, a jovem foi espancada e
estuprada por oito homens. Em seguida, jogada num rio e apedrejada. A morte
cruel foi o castigo por estar em território inimigo.
Como O GLOBO revelou ontem, na
primeira reportagem da série “Tortura, um mal que persiste”, 699 processos por
esse crime foram instaurados no Tribunal de Justiça do Rio desde 2005. Ao
contrário de tratados internacionais, que definem a prática como um crime
cometido pelo Estado, a lei 9.455/97 abrange atos cometidos tanto por agentes
públicos como por pessoas comuns. No Rio, a expansão do poder paralelo deu
visibilidade às atrocidades do tráfico e da milícia, organizações que criam
suas próprias leis e cometem crimes bárbaros em nome do domínio territorial.
Segundo dados da pesquisa “Julgando a tortura”, coordenada pela ONG Conectas e
pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, 70% das decisões em segunda
instância do Rio, entre 2005 e 2010, tratavam de torturas cometidas por agentes
privados.
MÃE CONTA QUE FILHA GRITAVA DE DOR
Andressa não tinha ligação com
o tráfico. Mãe de uma menina de 1 ano, a jovem trabalhava entregando panfletos
e cursava o 2º ano do ensino médio à noite. Sonhava em seguir a carreira
militar. No dia do crime, 16 de setembro de 2013, ela voltava da casa do
namorado, em Senador Camará, com um amigo e a sobrinha dele, de 8 anos. A
menina fugiu dos criminosos e foi até a casa da família, que teria avisado a
polícia sem ser atendida. Muito machucada — ela fora surrada com um pedaço de
madeira e recebera golpes de martelo na cabeça e na perna —, Andressa foi
carregada pelo amigo, que também havia sido espancado, até conseguirem ajuda. A
mãe dela, a auxiliar de serviços gerais Andreia Candido, de 37 anos, conta que
sua filha passou três dias sem atendimento, em cima de uma maca no Hospital
Salgado Filho, no Méier.— É muito difícil ouvir a sua filha dizer que foi
violentada e ainda conseguir forças para apoiá-la — emociona-se Andreia. — O
pior foi no hospital. Ela gritava de dor, mas ninguém ia medicá-la. Até hoje
não sei qual foi a causa da morte dela. Já chorei tanto que atualmente sinto
como se tivesse ficado seca por dentro.Três acusados pela morte de Andressa e
pelo espancamento do seu amigo, testemunha-chave do caso, foram presos e
condenados pelo crime de tortura, entre outros, com penas entre 36 e 42 anos de
reclusão em regime fechado. Outros cinco, que seriam adolescentes, ainda estão
soltos.
O assassinato do estudante
Hugo da Silva, de 18 anos, morador da Favela Roquete Pinto, em Ramos, dominada
por milicianos, também teve motivo banal. Ele foi espancado e arrastado por 500
metros na rua principal da comunidade até as margens da Avenida Brasil. O caso
aconteceu depois da histórica derrota do Brasil para a Alemanha, por 7 a 1, em
8 de julho do ano passado. Hugo, que bebia num bar com amigos, tinha deixado o
grupo para urinar numa praça. Foi abordado por um miliciano, que queria saber o
que ele estava fazendo. O estudante indagou a razão da pergunta e deu-lhe as
costas. Começou a briga. Mais de dez paramilitares armados chegaram ao local,
dando início ao espancamento. Na época, a favela, que fica na Maré, era ocupada
pela Força de Pacificação. Além disso, o fato ocorreu perto de um posto da PM.
No entanto, ninguém evitou a tortura.
— Eram socos, pontapés,
cotoveladas na nuca e chutes na cara dele. Foi horrível. Eles saíram arrastando
o corpo do rapaz. Quando se levantava, eles lhe davam uma banda e tudo
recomeçava. Isso aconteceu várias vezes. Tentamos ajudá-lo, mas eles gritavam
que ia sobrar para a gente — disse uma das testemunhas.
Hugo conseguiu atravessar uma passarela da Avenida
Brasil, onde foi socorrido por um morador. Levado para o Hospital Federal de
Bonsucesso, acabou não resistindo aos ferimentos. Desde então, seu pai, o
sargento da PM Gelson Miguel da Silva, de 45 anos, luta na Justiça para pôr os
assassinos do filho na cadeia. Segundo Gelson, o chefe da milícia na Roquete
Pinto está foragido, assim como outros seis acusados. Há quatro presos pelo
crime, entre eles o soldado da Marinha Deivid da Silva Gonçalves e o agente
penitenciário Jonathan Anselmo Marques dos Santos.
— Não vou negar que já tive
pensamentos ruins para vingar a morte do meu filho. Mas tenho autocontrole. Não
posso me igualar a esses bandidos. Acredito na Justiça — afirma Gelson.
O processo sobre o homicídio
de Hugo da Silva está no III Tribunal do Júri, em fase de depoimentos. Apesar
de sete dos 11 milicianos estarem foragidos, há informações de que eles ainda
mantêm negócios na Favela Roquete Pinto.
A antropóloga Alba Zaluar, autora
de um estudo sobre vitimização em favelas do Rio, explica que o poder paralelo
tem o seu próprio “tribunal” e suas leis, inclusive a do silêncio. Segundo ela,
as queixas sobre violência física são mais comuns em áreas de milícia do que de
tráfico. Em regiões controladas por traficantes, os litígios também são
resolvidos pelo poder das armas.
— Traficantes atiram no pé,
nas mãos. Só o Estado pode usar a violência legitimamente em prol da sociedade.
O problema é que o Brasil tem territórios extensos e, em alguns deles, a
polícia não entra. As UPPs surgiram para resolver esse problema: a imposição do
poder paralelo por milícias e pelo tráfico.
HISTÓRIA DE AMOR ACABOU EM MORTE
Bairro de Antonina, São
Gonçalo. Na noite de 11 de dezembro de 2014, traficantes invadiram uma casa.
Procuravam por Bruno Costa Rodrigues, de 31 anos. Ele pulou um muro para fugir,
mas não foi longe: na queda, feriu o pé e acabou sendo alcançado. Levou socos,
pontapés, pauladas. A tortura seguiu madrugada adentro. Os bandidos passaram de
motocicletas sobre seu corpo.
A violência extrema teve
várias testemunhas. Segundo o pai de Bruno, o comerciante Alberto Rodrigues
Neto, de 53 anos, seu filho foi socorrido depois que uma pessoa ligou para a
PM. Levado para o Hospital Alberto Torres, ficou internado, em coma. Tinha
fraturas pelo corpo e traumatismo no crânio. No dia 22, sem chances de
recuperação, teve a morte cerebral declarada pelos médicos. Sua família doou os
órgãos.
— Ele lutou dez dias, mas era
quase impossível resistir a tanta violência. Enterrei meu filho no dia 24 de
dezembro — diz Alberto, ao lado da mãe de Bruno, a dona de casa Solange Costa,
de 55 anos.
Os acusados foram presos e
estão sendo julgados por tortura seguida de morte. Testemunhas contaram que
Bruno foi caçado pelos bandidos porque começou a gostar de uma jovem parente de
um dos torturadores.
— Ele se apaixonou — lembra o
pai.
Fonte O Globo