quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A NOVA DITADURA III






Quadro de Fernando Botero da obra Massacres.


DESAPARECIDOS HOJE ULTRAPASSAM 7 MIL
NA DITADURA MILITAR, 136





Número de vítimas do tráfico de drogas e das milícias, cujos corpos nunca foram encontrados pela polícia, é 54 vezes maior do que o de pessoas sumidas durante os governos de exceção.
Sábado, véspera do Dia dos Pais, o funcionário público Cláudio Daltro Barbosa, de 50 anos, passa quatro horas curvado numa cadeira enquanto um tatuador grava em suas costas uma carta de 13 linhas. O texto, misto de declaração de amor e despedida, é endereçado ao filho, Diego, de 23 anos, desaparecido em março após desentendimento com um PM ligado à milícia que atua na Vila Sapê, em Jacarepaguá.

Diego figura entre os 10.464 desaparecidos catalogados de 1993 até junho pelo Serviço de Descoberta de Paradeiros da Delegacia de Homicídios, incluindo dados das unidades da Zona Oeste e da Baixada Fluminense.

Desse total, 70% (7.324) dos casos estariam relacionados à ação do tráfico e, mais recentemente, das milícias. No vácuo deixado pelo Estado, a ditadura imposta por esses grupos produziu, num período de 14 anos, 54 vezes mais desaparecidos do que os registrados durante os 21 anos do regime militar: 136, segundo levantamento do Tortura Nunca Mais.

Em cinco meses, o homem que evitava exames de sangue e injeções, por medo de agulhas, transformou o corpo num mosaico em homenagem ao filho.

— Isso aqui é uma forma minha, não sei, de autoflagelação.

É uma forma de atenuar essa dor insuportável — diz Cláudio, referindo-se às imagens do rosto do filho e de um coração partido tatuadas nos braços, após o desaparecimento dele.

Uma armadilha da milícia

Desde então, pai, mãe e o outro filho percorrem as ruas de Jacarepaguá, espalham cartazes com fotos de Diego e vão semanalmente à delegacia e ao Ministério Público. A investigação paralela da família reconstituiu as últimas horas de Diego. Recém-formado num curso de chef, ele trabalhava como mototaxista ao lado do laboratório Merck.

Vinte dias antes de desaparecer, ele brigou com um PM do 18 oBPM (Jacarepaguá) por causa de uma mulher. A partir daí, Diego passou a ser perseguido pelo policial. Na noite de 20 de março, ele comemorava com amigos o convite para trabalhar num restaurante quando uma mulher pediu que ele a levasse ao Largo da Preguiça.

Assim que saiu em sua moto, o jovem foi perseguido por um Audi A-4 e um Gol branco.

Os veículos, segundo investigação da Delegacia de Homicídios da Zona Oeste, eram usados por integrantes da milícia que atuam na Vila Sapê, entre eles o policial do 18oBPM.

Fechado pelo Audi, Diego perdeu o controle da moto, batendo na lateral do veículo e caindo. Rendido pelo grupo, o rapaz foi jogado na mala do carro e desapareceu.

Prática impede processo legal

José Gregori, ex-ministro da Justiça e atual presidente da Comissão de Direitos Humanos de São Paulo, explica que a tática de desaparecer com corpos, à qual o regime militar também recorreu, tem como objetivo impedir a formalização do processo legal. Ou seja, evitar a identificação do crime e dos possíveis culpados: — O desaparecimento de corpos é conseqüência da violência.

A violência vai se aperfeiçoando para praticar crimes correndo o menor risco possível. Esse tipo de raciocínio perverso, aplicado por razões políticas, é usado agora na violência criminal.

Foi o caso do aposentado Sebastião da Silva Marques, de 45 anos, que tinha saído de casa para comprar pão. Uma rotina de todas as manhãs, interrompida por dois jovens armados em 23 de maio de 2006. Levado pelos “soldados” ao chefe do tráfico numa favela da Zona Oeste, ele foi acusado de ser “X-9” (informante da polícia).

Condenado à morte, foi obrigado a cavar a própria sepultura, numa área militar, nos fundos da comunidade.

No caso de Sebastião, tráfico e PMs estariam associados. Segundo uma testemunha ouvida na delegacia, policiais teriam contado aos traficantes, em troca de R$ 2 mil, que o aposentado seria informante.

Meses antes de desaparecer, Sebastião havia sido atingido por uma bala perdida ao ficar no meio de um tiroteio entre PMs e bandidos, quando chegava do trabalho. O ferimento resultou na perda de parte de sua perna direita, obrigando-o a se aposentar por invalidez. Na ocasião, ele atribuiu aos PMs a responsabilidade pelo disparo que o atingiu. A investigação não apontou os culpados.

Para o delegado Paulo Henrique Pinto, da DH-Oeste, Sebastião foi morto pelo tráfico. Ele ressalta a necessidade de encontrar fragmentos do corpo para oficializar a crime. Já foram realizadas duas operações na região, inclusive em parte do Campo de Gericinó, que fica nos fundos da favela.

Também sem qualquer informação do filho, a diarista Marilene Prates, de 48 anos, carrega na bolsa a Bíblia e o álbum com fotos de Caetano, de 28 anos. Estudante de direito e motorista da Comlurb, ele desapareceu em 15 de junho passado, quando tentava recuperar o telefone celular roubado de uma amiga. O ladrão exigia R$ 300 para devolver o aparelho.

Caetano foi negociar a devolução do celular e nunca mais foi visto. Para a polícia, há fortes indícios de que ele foi morto por traficantes do conjunto Amarelinho, em Irajá.

— Caetano
dizia que ia escrever um livro sobre nossa família.

Para mim, ele está vivo — acredita Marilene.

Solange, outra mãe em situação semelhante, esteve com o filho no dia 13 de dezembro de 2005. Ele saiu dizendo que ia jogar bola. Na época, Douglas cursava a 6asérie num colégio particular pelo qual a mãe, copeira num banco da Zona Sul, desembolsava R$ 85. Ela ainda pagava aulinhas de futebol para o filho, que sonhava com o sucesso nos gramados. Ele foi seqüestrado, junto com outros nove jovens, por traficantes de Parada de Lucas que, na época, invadiram Vigário Geral.

— Não vou viver apenas com uma certidão de nascimento atestando que o meu filho um dia existiu. Não vou viver só com as fotos e a lembrança dele.

A polícia existe para nos proteger e não para se associar ao tráfico e sumir com os nossos filhos — desabafa Solange.

Segundo o processo judicial, o seqüestro de Douglas Roberto Alves Tavares, de 16 anos, foi arquitetado pelo traficante conhecido como Furica, que invadiu Vigário Geral dentro de um Caveirão alugado por R$ 50 mil por PMs do Destacamento de Policiamento Ostensiva (DPO) da favela. No depoimento de Tiago, um dos traficantes presos, Solange passou mal e teve que ser retirada da sala de audiências.

— Olhando fixamente para mim, ele contou que, quando o meu filho entrou no Caveirão, o Furica cortou o nariz dele com uma tesoura. Ele falou que nunca tinha visto um preto com nariz fino. No caminho, segundo ele, os traficantes foram cortando dedos, orelhas e línguas dos rapazes — conta Solange, que desde então foge do tráfico e já teve pelo menos 16 endereços.

Carla Rocha, Dimmi Amora, Fábio Vasconcellos e Sérgio Ramalho

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